O presente texto é a versão escrita, com correções pontuais, da palestra proferida no âmbito do Projeto Diálogos Telemáticos, realizado pelo Centro de Estudos do Poder Judiciário do Rio Grande do Sul junto ao Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul (TJRS) em 30 de maio de 2022.
1. De início, eu gostaria de deixar um agradecimento especial aos envolvidos na elaboração do evento e dar uma boa tarde a todos.

É uma grande alegria poder participar da nova edição do Diálogos Telemáticos, promovido pelo Centro de Estudos do TJRS e capitaneado pelo Desembargador Leonel Ohweiler. Cumprimento ainda os professores Miguel do Nascimento Costa e Guilherme Antunes da Cunha aqui presentes.
2. Quero também deixar registrado, de pronto, que o título deste evento – “Recursos e ações de impugnação do poder público no pós-pandemia” – é uma provocação para refletir sobre os dias futuros. Não é necessariamente uma alusão ao presente. Como todos bem sabem, a situação de emergência decorrente da pandemia do novo coronavírus (Covid-19) – ao menos para a Organização Mundial da Saúde – ainda não foi encerrada. O noticiário ainda registra um número impressionante de casos positivos e vários óbitos. A situação já foi pior, mas isso não justifica menos vigília.
3. De todo modo, é extremamente proveitoso poder discutir qual foi e qual será o impacto dessa crise sanitária nos recursos cíveis e nas ações de impugnação. O Brasil foi um dos poucos países que – graças ao emprego dos meios tecnológicos – praticamente não sofreu prejuízos em termos de prestação jurisdicional com a pandemia. Aliás, aproveito aqui para citar como exemplo a generalização do processo eletrônico, a acelerada digitalização de autos e a criação de novas ferramentas tecnológicas, em especial as chamadas “sessões virtuais de julgamento”.
4. A pandemia, porém, escancarou que alguns conceitos e alguns instrumentos processuais precisam ser aprimorados no nosso sistema recursal. Aliás, eu pessoalmente considero que é mesmo necessário repensar o sistema de controle das decisões judiciais como um todo. E digo isso pelo emaranhado de remédios jurídicos que passaram a coexistir, especialmente quando uma das partes da demanda for a Fazenda Pública.
5. Para tanto, basta imaginar uma tutela de urgência deferida pelo magistrado de primeiro grau, por exemplo, em uma ação que busca a entrega de medicamentos. No passado, poderíamos dizer com tranquilidade que o único meio para desafiar essa decisão seria o agravo de instrumento. O agravo é recurso típico para fazer frente às decisões interlocutórias. Hoje, claro, ainda é cabível o agravo de instrumento (art. 1015, I, CPC). Porém, já não é mais possível excluir outras medidas. Sendo o réu Fazenda Pública, poderia ele se valer da chamada “Suspensão de Tutela Provisória” prevista no art. 4º da Lei n.º 8.437/92. Mas não é só. Seria necessário examinar os fundamentos dessa decisão para avaliar se não há ali ofensa a alguma tese firmada pelo tribunal em incidente de resolução de demandas repetitivas. Em caso afirmativo, também será cabível reclamação com base no art. 988, IV, do CPC. E a depender do conteúdo versado na decisão atacada também não se pode sequer excluir o manejo de mandado de segurança. É isso mesmo. Conforme o caso, é possível a impetração do writ. Ao menos é o que diz o STJ. Em algumas situações, verificada a teratologia e não estando o conteúdo da decisão bem encaixado nas hipóteses de agravo de instrumento, seria possível a utilização de mandado de segurança contra o ato judicial. Claro, essa situação é excepcionalíssima. Mas o exemplo proposto bem ilustra que o panorama geral dos instrumentos de controle mudou e se torno mais complexo.
6. Aliás, nesse mesmo panorama, existe uma distinção usual quanto às espécies de remédios jurídicos para desafiar decisões. Em geral, a doutrina diferencia recursos, ações autônomas e sucedâneos recursais. Essa divisão basicamente decorre da distinção entre pretensão recursal e pretensão processual em geral. E como a cisão não consegue explicar todos os meios de controle, cria-se uma ilusória terceira via que reúne os instrumentos que não podem ser considerados nem recurso nem ação de impugnação.
7. Em grande síntese, os recursos são destinados a confrontar decisões judiciais dentro da mesma relação processual, mediante conduta voluntária da parte. Na clássica lição de Barbosa Moreira, recurso é o “remédio voluntário, idôneo a ensejar, dentro do mesmo processo, a reforma, a invalidação, o esclarecimento ou a integração de decisão judicial que se impugna”. Em contraponto, a ação autônoma dá origem a uma nova relação processual, que veicula uma pretensão processual própria. É processo novo. Os exemplos consagrados de ações autônomas são a ação rescisória, o mandado de segurança e a ação de nulidade. Os sucedâneos recursais por fim, são aqueles meios de correção que não veiculam pretensão própria nem manifestam, nos mesmos autos, uma pretensão recursal. Trata-se de um impreciso conceito por exclusão.
8. As definições tradicionais já revelavam muitos problemas à luz do Código de Processo Civil atual. E isto porque existem vários expedientes que, embora não sejam diretamente voltados à correção das decisões, cumprem esse desiderato. É o caso do IRDR, do IAC e do Conflito de Competência. No caso da Fazenda Pública, tem prevalecido que o já citado “Pedido de Suspensão” não foi revogado pela lei atual. E ao lado de todas essas armas, alguma ações de impugnação foram claramente ampliadas. O exemplo mais frisante é a reclamação. A reclamação é uma ação autônoma de impugnação. Hoje é possível manejar reclamação contra decisão que viola alguns tipos de padrões decisórios (art. 988, CPC). O curioso é que a reclamação tem por objetivo justamente obter a cassação de uma decisão judicial. É dizer, o objeto da reclamação é praticamente o mesmo de muitos recursos.
9. A essa altura, portanto, já me parece inadequado falar em teoria geral dos recursos. O que se deve pensar de agora em diante é em uma teoria geral dos instrumentos de controle. Ou, quem sabe, uma teoria geral dos remédios jurídicos.
10. A dita pandemia do novo coronavírus (Covid-19) contribuiu com o aumento das inconsistências entre o direito positivo, isto é, o texto tal como escrito, e o direito concretizado, isto é, enquanto realidade jurídica que produz efeitos no cotidiano de um processo judicial. E, incrivelmente, isto não é necessariamente algo ruim. Digo isso com bastante convicção porque a crise sanitária pode ser considerada um evento único cujos resultados são incertos.
11. O Poder Judiciário não pode simplesmente desconsiderar o contexto factual decorrente da pandemia. Tivemos a oportunidade de escrever sobre isso em texto recente. A pandemia é, inclusive sob enfoque jurídico, um desastre. É bom reforçar o ponto porque normalmente se faz referência à tragédia, à calamidade da pandemia como algo não jurídico. Acontece que um evento dessa magnitude também tem tratamento jurídico próprio e particularizado.
12. Defendemos em nosso livro – e aqui registro que dedicamos um capítulo específico para tratar dos efeitos da pandemia – que a crise sanitária pode ser vista, na perspectiva do processo civil, de modo individual e transindividual.
13. Na perspectiva individual, a pandemia, conforme a situação particularizada de cada litigante, poderá ter acarretado uma situação de força maior. O reconhecimento da força maior autoriza, no processo civil, a suspensão do processo (art. 313, VI, CPC), a suspensão de prazos (art. 221, CPC), a restituição do prazo para recorrer (art. 1004, CPC) e até mesmo a ampliação da cognição em grau recursal (art. 1014, CPC). Como o nosso diálogo aqui é justamente com o tribunal, cabe reforçar que o recorrente poderia alegar, por exemplo, que em razão da pandemia não foi capaz de propor alguma questão de fato sobre a sua pretensão. Essa matéria poderia, então, ser suscitada e julgada na apelação. Obviamente todas essas situações devem ser provadas. Não basta alegar genericamente que, em razão da pandemia, o recorrente perdeu o prazo para recorrer. É necessário demonstrar individual e concretamente que o evento pandêmico causou prejuízo.
14. Mas não é só. Como dito antes, a pandemia é juridicamente um desastre. Existe no Direito Internacional e no Direito Ambiental uma extensa literatura sobre como lidar juridicamente com um desastre. É o chamado “Direito dos Desastres”. A importância dessa categoria é que ela impõe uma série de obrigações para todos os atores sociais. Daí a perspectiva transindividual da pandemia.
15. Na perspectiva transindividual, a ocorrência de uma pandemia exige a adoção de standards decisórios próprios. Em grande síntese, conforme já tive a oportunidade de defender em texto publicado na Revista de Processo, os principais deles são: (a) contribuir para o ciclo de gestão do risco nas fases do desastre mediante prevenção, mitigação, resposta emergencial, compensação e reconstrução; (b) reduzir as vulnerabilidades decorrentes do desastre; (c) decidir com fundamento nas bases científicas disponíveis, dotadas de credibilidade, ainda que em estágio inicial; (d) atuar com parcimônia e equilíbrio frente à incerteza da situação, notadamente na imposição de medidas preventivas e precaucionais emergenciais.
16. Os importantes deveres relacionados com a mitigação dos efeitos negativos da pandemia, contudo, podem também ter feito com que boa parte das formalidades tradicionais do processo civil fossem flexibilizadas. Ainda não existem estudos e dados mais concretos sobre isso, mas é bastante razoável cogitar que houve uma facilitação no acesso aos tribunais e, quem sabe, na sobreposição dos instrumentos de controle. E eu gostaria de reforçar aqui que isso é absolutamente legítimo sob a ótica do direito dos desastres. Como exemplo, cito aqui caso concreto em que se admitiu a conversão de um mandado de segurança em agravo de instrumento, aplicando-se o chamado “princípio da fungibilidade” também entre recursos e ações de impugnação. É algo bastante curioso, mas que se explicou pelo atendimento ao direito material subjacente em um contexto de pandemia. Passada a crise sanitária, será o momento de refletir melhor sobre a articulação entre os instrumentos de controle.
17. E já me encaminhando para o final, como provocação, creio que já é possível, à luz do sistema vigente, defender o seguinte: instrumentos de controle que possuem o mesmo objeto não admitem sobreposição. Assim, por exemplo, se a Fazenda Pública escolhe confrontar a decisão judicial com uma “Suspensão de Tutela Provisória”, não poderá depois se valer do agravo de instrumento. O recurso deverá ser inadmitido porquanto a pretensão à correção já foi exercida. O inverso também é verdadeiro: se é interposto agravo de instrumento, não caberá superveniente pedido de suspensão. E digo mais: me parece que a vedação à sobreposição também deveria abranger ações de impugnação. Em suma, se há um instrumento típico e específico disponível, descabe a adoção irrestrita de outro meio, seja qual for. Nesse norte, é inadmissível reclamação enquanto existir recurso típico disponível. Essa reclamação não deve ser conhecida. A lógica, portanto, é semelhante à do mandado de segurança. Não cabe mandado de segurança se couber recurso com efeito suspensivo, sendo que hoje todos os recursos admitem efeito suspensivo por atuação judicial.
18. A provocação aqui vale também para os incidentes processuais. Se o objetivo do interessado é reverter uma decisão judicial, seguramente não será cabível incidente de resolução de demandas repetitivas. O IRDR não se presta para a correção de decisões judiciais, mas sim para a fixação de teses jurídicas. Se o interessado apresenta um IRDR com claro propósito de cassar uma decisão, na realidade, deveria ter utilizado o recurso disponível. O IRDR sequer deve ser conhecido. Não é cabível IRDR para exercer pretensão à correção de decisões judiciais.
19. Enfim, os desafios são enormes. E me parece que uma discussão mais ampla sobre os recursos e as ações de impugnação no pós-pandemia, inclusive quando uma das partes for a Fazenda Pública está apenas começando. Muito obrigado.
Assista a íntegra do evento:
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